Margarida Couto: “É do interesse das empresas serem responsáveis”
Se quiserem sobreviver e ser prósperas, as empresas têm todo o interesse em comportarem-se de forma responsável. É esta a convicção da presidente do GRACE, Margarida Couto, que rejeita liminarmente a leitura de que o framework ESG seja um ataque à economia de mercado. Neste caminho que o tecido empresarial tem de percorrer – por convicção ou obrigação – encontra no retalho uma consciência acrescida. Mas também desafios muito específicos, relacionados com as pessoas e o que a associação define como o futuro do trabalho.
Store | O GRACE é uma associação em prol de empresas responsáveis. Que atributos precisa ter uma empresa para merecer este qualitativo?
Margarida Couto | É evidente que o termo é demasiado amplo para ter uma única visão, mas, no meu entender, uma empresa responsável é uma empresa que se comporta de uma forma que leva em linha de conta os seus interesses – naturalmente legítimos – mas também os dos seus diversos stakeholders, e não apenas do acionista ou investidor. É uma empresa que se preocupa com o impacto, positivo ou negativo, na comunidade, no ambiente, nos colaboradores. No mínimo dos mínimos, uma empresa responsável preocupa-se em neutralizar os impactos negativos da sua atividade. Posso assumir que uma empresa responsável é uma empresa que se comporta de modo a manter sempre a sua licença social para operar.
Olhando para o tecido empresarial português, diria que a responsabilidade, nesse sentido abrangente, é já estratégica?
Há empresas que já nasceram assim. Tipicamente, as empresas familiares nascem responsáveis, porque levam muito dos valores familiares e as famílias, como se sabe, têm visões de longo prazo. Muitas vezes, a empresa é uma extensão da família e as relações com os colaboradores são quase como de família, duradouras. É o caso da Delta, que é uma empresa responsável desde a origem.
E esse atributo – de ser uma empresa responsável – é reconhecido pelos diversos stakeholders. Quando uma empresa se comporta de forma consistentemente responsável, se houver alguma coisa que corra mal, mesmo a nível reputacional, a empresa tem essa credibilidade, pelo que é muito mais resistente, é-lhe dado o benefício da dúvida.
É crescentemente intolerável as empresas não serem responsáveis. Se pensarmos nas 100 maiores economias do mundo, 69 são empresas, não países. E uma empresa dessa dimensão – muito significativa num país, numa região ou a nível global – não tem como não fazer esse caminho de responsabilidade, de um framework que envolva o ambiente, o social e o bom governo.
A governance é determinante. Se as práticas de governo não forem sólidas, tudo o resto não tem onde assentar. Basta lembrar aqueles escândalos a que assistimos, mesmo em Portugal, em que empresas supostamente responsáveis e sustentáveis: caíram como um baralho de cartas por causa do mau governo. Tem de haver uma consciência de quem governa a empresa de que isto tem de começar lá em cima e de que as regras têm de ser cumpridas com ética, integridade e genuinidade. Mas, não chega. A empresa tem dois grandes stakeholders – o planeta e o social. E o social tem uma vertente para dentro, as pessoas da empresa. Não basta dizer que o principal ativo são as pessoas, porque depois ter práticas que não são compatíveis é o tipo de social washing que causa imediata rejeição. O mesmo com a comunidade em que se insere: numa microempresa pode ser uma freguesia, numa multinacional pode ser o mundo.
Quando se fala em responsabilidade, os critérios ESG [siga inglesa para Ambiente, Social e Governance] são a baliza. Mas o governance, cuja importância frisou, acaba por ser aquele que é menos falado…
O framework ESG é apresentado como três colunas, mas penso que, na base, devia estar o G, sobre o qual assentam o E e o S. Sem governance, não me parece que o resto tenha onde se sustentar. É como um edifício: se as fundações não forem sólidas, por mais fantástico que seja, um dia cai. A questão não é “se”, é “quando”. No contexto da responsabilidade empresarial, as fundações são a ética, a integridade, a gestão de risco. Se não existirem, tudo o resto soçobra.
Ainda assim, o ESG ainda não entrou há muito tempo no léxico corporativo.
A primeira vez que há relato desta expressão que resume a visão holística que as empresas devem adotar reporta a um relatório das Nações Unidas, de 2004 – “Who cares wins”. E, de repente, o termo ganhou tração, porque é um acrónimo feliz para englobar todas estas realidades da responsabilidade empresarial. Não muito antes de 2018, 2019 tornou-se parte do léxico comum e consolidou-se, em 2020, no Manifesto de Davos. A conferência de Davos reúne a liderança global, não só dos governos, como das empresas, pelo que o manifesto que dela resulta tem uma grande carga simbólica. E no de há dois anos afirma-se que as empresas não podem estar apenas focadas na criação de valor acionista. Claro que têm de o criar, porque, se não o fizerem, não atraem investidores e capital. Aliás, o framework ESG diz que o acionista não deve ser esquecido, que continua relevante, mas que há outros stakeholders, como o planeta. Porque se o planeta se tornar inabitável, não há empresas, nem economia de mercado, o que tornou muito evidente que as empresas não podem não olhar para o planeta.
Até porque muito do que hoje está mal no planeta foi causado pelas empresas, não porque elas sejam malévolas, mas porque há, muitas vezes, consequências inesperadas. Hoje, o petróleo é diabolizado, mas convém não esquecer que o petróleo tirou milhões de pessoas da pobreza. O impacto que teve na economia e na sociedade foi brutal, mas, entretanto, constatou-se que foi feito à custa de uma deterioração dos ecossistemas superior ao que se pensava. Constatando isso, as empresas responsáveis não pensam apenas nos lucros, até porque, para serem sustentáveis, têm de durar. No final do dia, é do interesse das próprias empresas comportarem-se de forma responsável. O que, às vezes, contamina esta conversa é a tentativa de encontrar santos e vilões.
Em que medida o GRACE reflete estas preocupações?
O GRACE cresceu muito, atualmente somos mais de 210 associados, o que é um ótimo sinal. Diria que este crescimento também é um reflexo do facto de muitas empresas portuguesas, com a crise financeira, se terem virado para a exportação; e quando exportam para mercados mais sofisticados e mais exigentes, confrontam-se com a necessidade de mostrar o que estão a fazer em termos de ambiente, sociais e de governance.
Acredito que, em Portugal, esse movimento é crescente. Mas, há, infelizmente, empresas que ainda não perceberam a importância destes temas; não é que se comportem, necessariamente, de forma irresponsável, não estão é a fazer as coisas de modo estruturado. Hoje, não chega ir fazendo as coisas bem feitas, tem de se fazer de forma sistematizada, porque os colaboradores, os clientes, os consumidores e os investidores fazem perguntas, querem saber, querem ver.
Assim, muitas empresas fazem por convicção, outras por constrangimento, outras ainda por compliance.
Compliance em que medida?
Um caso muito óbvio é o recrutamento de pessoas com deficiência, sendo que, em janeiro, entra em vigor a lei que se aplica às empresas com mais de 75 pessoas. Já havia empresas que se sentiam responsáveis por empregar pessoas mais frágeis e que já recrutavam pessoas com deficiência por convicção, mas as que não o faziam vão ter de o fazer por obrigação.
Outro dos temas que está a subir muito na agenda das empresas responsáveis é o da paridade de género. As empresas estão a adotar planos que corrijam a distorção que resulta do facto de haver, em Portugal e na maior parte dos países do mundo, ligeiramente mais mulheres do que homens, de as mulheres serem muto mais qualificadas do que os homens, mas os homens dominarem as lideranças. Em Portugal, é chocante. Nos últimos anos, o número de licenciados versus o de licenciadas inverteu-se de uma maneira absurda, com os homens a representarem um quinto das pessoas que saem das faculdades. Além disso, a maior parte das pessoas que tem mestrado e doutoramento são mulheres, portanto não é um tema de qualificação, não é um tema de falta de mulheres. As empresas percebem que há, algures um degrau partido, porque, quando é para ascender à liderança, embora na base haja muito mais mulheres, não são elas, mas os homens, que ascendem. Há muitas empresas a adotar targets, sem que as obriguem. Mas, neste momento, também há uma lei das quotas de mulheres nos órgãos de administração das empresas cotadas e estas têm de o fazer por compliance.
São temas aos quais a sociedade dá tanto valor que se as empresas, se querem continuar a atrair talento, a manter os clientes, a ser bem-sucedidas e prósperas, não podem ignorar.
Diria que as políticas públicas estão a reagir ou são, de algum modo, percursoras?
No tema da representação de género, Portugal foi front runner. Há países que já têm essa lei há mais tempo, mas não são muitos. É das legislações mais avançadas, embora, no setor privado, esteja limitada às empresas cotadas, mas abarca a administração pública em todos os domínios. Impõe 40% de cada género, sendo que os outros 20 podem flutuar, porque igualdade não é tirania.
Na parte das quotas para pessoas com deficiência no mercado de trabalho, Espanha e França têm essa lei há muito tempo. Devo dizer que é um tema central do GRACE, porque uma coisa é recrutar pessoas com deficiência e outra coisa é recrutá-las de forma inclusiva. Tem de ser uma dignificação. E, para nós, tem sido muito útil beber a experiência das empresas espanholas e francesas nossas associadas, de modo a desmistificar o tema, a mostrar os efeitos positivos e transformadores que essa inclusão tem nas equipas.
Um dos propósitos do GRACE é precisamente influenciar essas políticas. Quão ativo tem sido? E, em concreto, como se tem materializado essa influência?
Durante alguns anos, sentimos que éramos a voz das empresas, mas não éramos reconhecidos como tal, a nossa voz não era chamada. Mas mudou. O facto de todos estes temas estarem a ganhar mais importância a nível societal faz com que a notoriedade do GRACE tenha aumentado. Somos, nomeadamente, ouvidos em consulta pública sobre estes temas de responsabilidade e sustentabilidade. Dou-lhe um exemplo: a CMVM [Comissão do Mercado de Valores Mobiliários] lançou recentemente uma consulta pública sobre a forma de relatar sustentabilidade, o GRACE participou e devo dizer que a larga maioria dos nossos comentários foi incorporada. É importante que as leis se adequem à realidade das empresas.
Naturalmente, gostávamos de influenciar muito mais as políticas públicas. E fazemo-lo também identificando leis que são antigas ou em que encontramos oportunidades de melhoria e levamo-las ao legislador, seja o governo, seja o parlamento, no sentido de as tornar mais friendly do ponto de vista do caminho das empresas para a sustentabilidade, facilitando em vez de dificultar.
Notícia retirada da Store Magazine nº 43 abril/junho de 2022, que pode consultar aqui.